Instruções para subir uma escada rolante: fotografia como elemento de análise da apropriação do corpo e suas relações históricas

Escada x Escada Rolante. Até o começo do século XX, a circulação vertical era feita através da escada. Sem o aparato da eletricidade, a circulação vertical demandava esforço físico e atenção dos usuários, dependendo somente da força humana. A escada rolante surge “com o rush das invenções industriais junto aos desejos da ficção científica de 1800, apresentada em 1915 como objeto de entretenimento na grande exposição de Paris e de Coney Island” (KOOLHAAS, 2014, pg.1303). Logo depois, passa a ser usada como elemento funcional de circulação. A princípio, a sua utilização deveria substituir o uso da escada comum, entretanto, o novo aparato tecnológico não cumpriu essa função, passando a ser um elemento complementar e adquirindo um novo significado. Com degraus maiores para acomodar um corpo parado em pé, a escada rolante possibilita um fluxo de pessoas mais intenso, conectando espaços mais íngremes com uma menor área de incidência. Comparada a escada, ambas exigem ritmos, sensações e condicionamentos físicos diferentes daqueles que ali transitam. 

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Segundo Rem Koolhaas, a escada rolante é: “um dispositivo desenhado não apenas para aumentar o potencial da escada, mas para substituí-la... como falha nisso, ela adquire uma vida separada, como um elemento separado, com suas próprias semióticas, suas próprias tipologias, seu próprio destino arquitetônico” (KOOLHAAS, 2014, pg.1303). De acordo com o autor o fato da modernidade querer “reinventar a possibilidade máxima” do existente (KOOLHAAS, 2010, pg.22) gera uma relação de dependência entre o elemento reinventado e aqueles que o utilizam, causando uma sensação de necessidade do uso daquela invenção para a vida cotidiana.

Em relação ao projeto de zonas de circulação, a inserção de escadas rolantes está relacionada a expectativas de intensificação do fluxo de pedestres, muitas vezes utilizada para a mercantilização do espaço. Essa ideia pode ser verificada ao observar a dinâmica do edifício Centro Cultural Pompidou onde, segundo Baudrillard, o elemento de circulação vertical transforma o projeto arquitetônico em uma mercadoria. A edificação vira um ícone e a estocagem de programas se torna um grande atrativo implicando no aumento de pessoas, e assim, gerando filas e trânsitos. A sua imagem imponente potencializada pelo elemento vertical e sua grande variedade de programas (galerias, biblioteca, teatro, cinema, terraço-mirante, restaurante, loja) tornam o edifício atraente e convidativo para um público abrangente. 

O futurismo na escada rolante

Lançado em 1967, o filme Playtime- Vida Moderna de Jacques Tati, cria um cenário futurístico em um espaço fictício próximo ao centro de Paris. A localização é evidenciada através dos símbolos arquitetônicos da cidade, refletidos nas fachadas espelhadas dos edifícios. Ao longo do filme, esta e outras metáforas apresentam um passado confrontado e sobreposto pelos novos modos de viver. Embora tenha sido lançado há mais de meio século, essas imagens e disputas não fogem do espaço urbano atual.

Através da intensa malha urbana, fluxo demarcado e predominantemente viário, vê-se uma cidade com calçadas estreitas somente para passagem de pedestres. Prédios com linguagem modernista, em estilo internacional, fachadas de aço e vidro, exibem a vida privada para a rua como vitrine. Dentro desses prédios, os negócios consolidam um ambiente de trabalho setorizado e incubado. Os meios de circulação vertical são mecânicos, restritos ao elevador e à escada rolante. A partir dessa junção entre cidade e edifício, o filme se constrói. Caminha questionando o ideário modernista do pós-guerra e sua inserção nas cidades construídas.

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Still do filme “PlayTime - Vidas Modernas “ dirigido de Jacques Tati. França, 1967
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Still do filme “PlayTime - Vidas Modernas “ dirigido de Jacques Tati. França, 1967

O Beaubourg – Centro Georges Pompidou, inaugurado em 1977 – é um exemplo da Paris que Jacques Tati prenuncia em seu filme. O edifício exibe seu design inovador de forma “móvel, comutante, cool e moderna” (BAUDRILLARD, 1991, pg.83), manifestado pelas escadas rolantes entubadas que possibilitam a circulação vertical dos visitantes. Em vez do sistema de circulação de fluídos e pessoas se concentrar no interior, está ao avesso na parte externa, constituindo um elemento arquitetônico inovador que serve de canal para atrair o visitante da parte urbana para o interior livre do centro cultural. Apesar da escada rolante no Centro Pompidou ter sido desenhada com um novo visual e complementada com outras funções – conexão, atração e inovação visual – sua finalidade principal e sua tecnologia continuaram as mesmas: a circulação massificada.

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Centre Pompidou via Flickr user dalbera licensed under CC BY 2.0

Potencialização do mecanismo

Na contemporaneidade, os fluxos motivados pela escada rolante são planejados para atingir propósitos específicos. Por exemplo, nos shopping centers, o fluxo nas escadas rolantes torna-se pretexto para aumentar as vendas de certas lojas; nas lojas de departamento, as escadas rolantes servem como atração de clientes pela sua estética tecnológica, além de ser uma plataforma de exposição do consumidor para ver e ser visto; nas estações de metrô, além de possibilitar um fluxo maior de pessoas, a disposição da escada rolante contribui para uma desaceleração do ritmo de circulação, propiciando um momento de pausa para os passageiros .

Como esclarecido na 14ª Bienal de Arquitetura de Veneza e publicado no livreto Escalator, através do artigo “Elements of Architecture”, de Rem Koolhaas, OMA, Harvard Graduate School of Design e Irma Boom, a escada rolante é um elemento da arquitetura do sistema capitalista global que conecta diferentes níveis como se fossem um só, fazendo-se perder a noção de escala. Esse sistema de circulação busca padronizar e oferecer o mesmo conforto ao usuário em qualquer contexto, além de priorizar o espaço individual dentro de um elemento de circulação de massa.

A escada rolante se tornou um elemento banalizado no cotidiano devido à circulação automatizada, tanto na questão mecânica quanto na sua relação com os usuários. Um dos fatores que a torna menos notada pode ser a falta de mudança no seu design e a ausência de desenvolvimento tecnológico desde a década de 60. Entretanto, continua desempenhando um papel importante nos projetos e edificações de grande circulação, porque facilita o fluxo intenso e contínuo de pessoas. Complementando a função da escada e do elevador, ela se diferencia por proporcionar comodidade a um maior número de pessoas locomovendo-se ao mesmo tempo. Acaba por oferecer um tempo de parada durante a transição de um nível a outro, seja por meio de meditação ou até anestesia.

Em São Paulo, a primeira escada rolante foi instalada na Galeria Prestes Maia em 1955. A princípio, causou certa surpresa aos paulistanos por ser um elemento de tecnologia moderna. Mas hoje pode ser encontrada na entrada de museus, prédio de negócios e loja de departamento servindo a outros propósitos que não somente a circulação de pedestres. A escada rolante pode ter funcionalidades práticas, como o retardamento de possíveis roubos em shoppings centers, ou funcionalidades estéticas, como símbolo de status e imponência em edifícios de negócios. Também pode ser reproduzida sistematicamente, como é o caso dos metrôs e aeroportos, potencializando a aceleração do ritmo de trabalho e da circulação de dinheiro. Deste modo, embora sempre sirva ao propósito da circulação de pedestres, a escada rolante desempenha diferentes funções dependendo do local e da maneira com a qual está inserida. 

Instruções para subir uma escada rolante – ensaio fotográfico

O ensaio fotográfico “Instruções para subir uma escada rolante” foi realizado com o objetivo de analisar a relação de indivíduos e coletivos com a escada rolante, visando a compreensão desse espaço-objeto através do ritmo, comportamento dos usuários e composição do entorno, levando em conta o ponto de vista arquitetônico e urbanístico. A materialização da proposta consistiu na captura da relação dos usuários com a escada rolante através de um ensaio fotográfico analógico reunido no fotozine “Futuro do Passado”. As fotografias foram capturadas no centro expandido de São Paulo, que concentra desde a década de 1950 a grande maioria das escadas rolantes, representando as várias camadas de tempo da cidade, assim como a trajetória socioeconômica da população. Se propõe, por fim, a perceber como o comportamento humano reage à cidade e a seus elementos genéricos importados.

Assim, as imagens preto e branco foram ordenadas em três categorias de uso das escadas rolantes: direção, desorientação e anulação. 

Direção: o entorno costuma ser de programa específico, o usuário é filtrado e costuma ter conhecimento prévio do destino. Nos degraus da escada rolante o corpo parado se ocupa calmo e espaçosamente. A escada rolante tem uma conexão mais objetiva, com acesso rápido e direto. O fluxo é baixo a médio. 

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Escadas rolantes do centro expandido. Image © Marina Schiesari
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Escadas rolantes do centro expandido. Image © Marina Schiesari
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Escadas rolantes do centro expandido. Image © Marina Schiesari
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Escadas rolantes do centro expandido. Image © Marina Schiesari

Desorientação: o usuário parece disposto ao percurso pré-definido criado pelo entorno. O corpo parado nos degraus se mostra relaxado e o olhar desnorteado por conta do excesso de informações externas. O objetivo neste contexto é criar um percurso de contemplação arquitetônica de teor comercial. O fluxo é médio a alto.

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Escadas rolantes do centro expandido. Image © Marina Schiesari

Anulação: o usuário tem um percurso obrigatório para chegada e destino. Nos degraus o corpo se locomove impaciente para uma chegada rápida ou fica parado para recuperar o fôlego e descansar a mente. Têm regras mais rígidas de fluxo e comportamento. O objetivo da escada é dinamizar o fluxo intenso.

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Escadas rolantes do centro expandido. Image © Marina Schiesari
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Escadas rolantes do centro expandido. Image © Marina Schiesari
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Escadas rolantes do centro expandido. Image © Marina Schiesari
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Escadas rolantes do centro expandido. Image © Marina Schiesari

Futuro do Passado

Bibliografia resumida
BAUDRILLARD, Jean.”O efeito Beaubourg”, em: Simulacros e Simulação, Lisboa: Relógio D´Água, 1991, pp. 81-96.
FOUCAULT, Michel. “Outros espaços”, em:  Coleção Ditos & Escritos III, Rio de Janeiro/São Paulo: Forense Editora, 2001.
KOOLHAAS, Rem et al. “Escalator”, in: Elements of Architecture - 14 Internacional Architecture Exhibition, Veneza: Marsilio Editori Spa, 2014, v.13.
KOOLHAAS, R. Três textos sobre a Cidade: Grandeza, ou o problema do grande; A cidade genérica; Espaço-lixo. Barcelona: Gustavo Gili, 2010. 
CORTÁZAR, Julio. “Instruções para Subir uma Escada”, em: Histórias de Cronópios e de Famas, Rio de Janeiro/ São Paulo, Editora Civilização Brasileira, 1973. 
AUGÉ, Marc. Não-lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus/Travessia do Século, 2002.

Inspirada pelo título da crônica de Júlio Cortázar, “Instruções para Subir uma Escada”, a pesquisa experimental “Instruções para Subir uma Escada Rolante”, desenvolvida na Associação Escola da Cidade,” se conecta à crônica ao descrever um elemento arquitetônico pela perspectiva do corpo. Este ensaio é um excerto originalmente publicado na Revista Cadernos de Pesquisa #7 da Associação Escola da Cidade. Trata-se de publicação proveniente de Pesquisa Experimental desenvolvida entre 2017 e 2018 sob orientação de Fernanda Pitta e Marcelo Anaf. Agradecimentos: Amanda Silber, Isabela Moraes, Alexandre Kok, Daniella Motta, Fernanda Pitta, Marcelo Anaf e Tuguo Ogawa.

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Sobre este autor
Cita: Marina Schiesari. "Instruções para subir uma escada rolante: fotografia como elemento de análise da apropriação do corpo e suas relações históricas" 30 Mar 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/959104/instrucoes-para-subir-uma-escada-rolante-fotografia-como-elemento-de-analise-da-apropriacao-do-corpo-e-suas-relacoes-historicas> ISSN 0719-8906

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